Durante anos a fio era recomendado não levar para casa os problemas do trabalho, ao mesmo tempo que as chefias no trabalho diziam aos seus colaboradores que os problemas de casa eram para ficar à porta da empresa.

Esta mentalização da vida, esta dualidade comportamental, foi completamente abalroada pela Covid.19. A pandemia atirou o trabalho para dentro de casa de cada um.
Mesmo que não esteja em teletrabalho, é impossível não sentir as problemáticas profissionais e não deixar de as comentar no seio da família.

Acabou a suposta dupla vida ou dupla personalização da vida. O “eu” enquanto ser humano com questões pessoais e o “eu” enquanto ser humano profissional, é uma separação que não faz sentido nenhum.

Nós somos um e um só, colocados num único ambiente, que é o ar que respiramos e o dia para o qual acordamos, rodeados de pessoas e coisas, ora novas ora de sempre, e, invariavelmente enredados nos pensamentos e sentimentos.
Não somos dois, a pessoa e o profissional. Não é saudável a dupla personalização da vida. Todos os assuntos são diferentes, mas quem os absorva é um.

A pandemia Covid.19 veio dizer à humanidade que somos todos iguais, simples e com egos do tamanho que cada um o nutre.
Notam-se os egos! Hoje mais que nunca!
Se antes dissimulavam, hoje vêm-se bem porque se manifestam de inconformidade perante o banho de simplicidade que é perder mobilidade, lidar com rotinas, ver as mesmas pessoas, ter de andar de máscara, não poder abraçar ou beijar, ficar doente de repente e perder pessoas próximas.
O ego adora previsibilidade e certeza e o que mais temos é o oposto. É confiar no dia a dia, sem mais. O ego não sabe o que isso é.

Hoje os egos estão doidos. Sentem-se incompreendidos e inadaptados.
Bem se vêm nas ruas, em pequenas revoltas do quotidiano. Os egos não se aguentam dentro de nós, debaixo das roupas, quietos, calados e simplesmente a observar o que se passa.
Nada. Mesmo perante a pandemia eles procuram mostrar a sua relevância perante os outros. Sim, perante os outros egos. Afinal, cada um de nós tem um “animal egóico”, ainda que em algumas pessoas pareça domesticado como se fosse de estimação.

É nas empresas, na política, até na saúde e nas relações entre vizinhos. Em todos os domínios se perceciona o inconformismo egóico da sociedade.
A liberdade não acabou, nem a democracia está em perigo, mas todas estas limitações parecem uma ditadura. É a ditadura da fragilidade humana.
Um vírus colocou-nos a todos a marchar igual, na mesma farda e debaixo das mesmas regras.
É uma ditadura em que todos estamos misturados numa única vida. Esta, a que todos vivemos em 2020.

Este ano termina com inúmeras lições de vida e cada um está a saber tirá-las. Não há uma lição nem mil lições. Há as que cada um tira para si, em silêncio ou em mudanças de atitude. Não duvido que cada um está a tirar as suas leituras de vida perante esta pandemia.
Isso é bom.

Não tenhamos receio de sermos quem somos, únicos e irreplicáveis, misturando trabalho com família no ritmo e ordem que tiver que ser, lidando com o dia a dia na dose da paciência e tolerância possível.
Por vezes raiva, por vezes alegria, mas sempre vida.
Isto é viver e o sofrimento faz parte da vida.

Boas Festas!

José Miguel Marques Mendes
Administrador